Qual então é o caminho que leva a vida? A porta estreita, a estrada menos percorrida, a sabedoria alternativa de Jesus. Ela tem duas dimensões intimamente relacionadas. A primeira é o convite para conhecer o Deus misericordioso e uterino, em vez de como a origem e a perpetuação de obrigações, limites e divisões da sabedoria tradicional (não importa se judia, cristã ou secular). A segunda é o convite a uma trajetória que se afasta da vida baseada na sabedoria tradicional em direção a uma vida que é cada vez mais centrada em Deus. A sabedoria alternativa de Jesus encara a vida religiosa como um relacionamento que se aprofunda com o Espírito de Deus, não uma vida de obrigações e recompensas.
Exemplos dessa estrada são ilustrados por diversas imagens que nos foram apresentadas por Jesus. Ele usava o imaginário do coração para falar da necessidade de uma transformação interior. Para Jesus, como de uma forma geral para a psicologia judaica da Antiguidade, o coração representa o âmago de cada um em seu nível mais profundo. Quando o coração está centrado no que é finito, ele se torna fechado e endurecido em vez de aberto e receptivo. O que é preciso, então, é um coração novo – uma transformação interna que brota pela profunda concentração em Deus.
Aqui o monoteísmo profundo de Jesus (e do judaísmo em si) pode ser percebido com clareza: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças”. Essa é a essência da porta estreita de Jesus. Na verdade, uma pessoa pode ver a sabedoria alternativa de Jesus como a radicalização do primeiro mandamento, que o coloca contra as convenções da tradição, mesmo aquelas convenções da tradição considerada até então sagrada, pois é possível estar centrado na tradição sagrada e ainda assim ter o coração distante de Deus.
A porta estreita como a trajetória para a transformação interna é também apontada por uma segunda imagem. Um imaginário enfatizado e ampliado pelos evangelistas, mas que pode nos levar de volta ao próprio Jesus, a porta estreita é mencionada como uma passagem através da morte: “Quem não carrega a sua cruz e me seguem, não pode ser meu discípulo”. A morte como imagem para o caminho da transformação aponta para a morte para o mundo da sabedoria tradicional como o centro da segurança e da identidade pessoais, e a morte de si mesmo com o cerne das próprias preocupações. É uma imagem instigante para o caminho da transformação espiritual. Não apenas a morte é a última libertação e assim o oposto do apego que marca a vida de acordo com a sabedoria tradicional, como o processo pode frequentemente envolver estágios que associamos ao processo da morte física: negação, ira, negociação, depressão e aceitação. O caminho da morte também é, para Jesus, o caminho para a nova vida. Ele resulta no renascimento, uma ressurreição para uma vida centrada em Deus.
Dito de forma mais sucinta ainda, a estrada menos percorrida é a vida no Espírito. É a vida que o próprio Jesus conhecia. A transformação da percepção para a qual Jesus convidava seus ouvintes fluía de sua própria experiência espiritual. Essa parece a melhor explicação para a origem da sabedoria de Jesus. Existe uma voz soberana na sabedoria Dele, uma que conhece a tradição, mas cuja vantagem não é uma simples tradição.
Podemos supor que a fonte de Sua voz soberana foi uma experiência iluminadora semelhante a experiências relatadas por outros grandes sábios. Como alguém íntimo de Deus, Jesus O conhecia pela Sua compaixão, não como um Deus de exigências e limites. A vida para qual convidava seus ouvintes era uma vida no Espírito que Ele mesmo havia experimentado. O caminho estreito, a estrada menos percorrida, é uma vida centrada no Espírito de Deus.
Essa é uma mensagem bastante desafiadora para as formas seculares e cristãs da sabedoria tradicional de nossos tempos. A sabedoria de nossa cultura secular não afirma a realidade do Espírito; a única realidade, não há dúvida, que é o mundo visível de nossa experiência comum. Dessa forma, ela busca por satisfação e significado no mundo material. Seus valores dominantes são realização, afluência e aparência. Vivemos nossas vidas em conformidade com esses valores, e tanto nossa autoestima quanto nosso nível de satisfação pessoal dependem de como nos avaliamos em relação a esses padrões de nossa cultura. Não apenas o esforço de se comparar é estafante, como, mesmo quando temos um relativo sucesso em fazer isso, descobrimos muitas vezes que a recompensa é insatisfatória. Podemos experimentar a saciedade e ainda nos sentirmos com fome. Talvez Santo Agostinho e outros tivessem razão quando diziam que nós somos feitos de modo que nosso apetite é infinito. Os sinais que as pessoas em culturas modernas frequentemente emitem em relação à ansiedade por algo mais são muitos e encorajadores.
Talvez Santo Agostinho e outros tivessem razão quando diziam que nós somos feitos de modo que nosso apetite é infinito.
O caminho de Jesus também desafia muitas formas comuns de cristianismo, como já salientamos. Em especial, nos convida a sair de uma “religião de segunda mão” para a “religião de primeira mão”. A religião de segunda mão é o caminho de ser religioso com base na crença do que se ouviu de outros. Consiste em pensar que a vida cristã é sobre acreditar unicamente no que a Bíblia diz ou no que as doutrinas da Igreja ditam. A religião de primeira mão, por sua vez, consiste em um relacionamento com aquilo que a Bíblia e os ensinamentos da Igreja apontam – com a realidade que chamamos de Deus ou de Espírito de Deus.
A transformação de uma religião de segunda mão para uma de primeira mão, viver de acordo com o que se ouviu para uma vida centrada no Espírito, é o cerne da sabedoria alternativa de Jesus e também da tradição judaica na qual Ele viveu. Uma das expressões mais poderosas dessa transformação é encontrada no Livro de Jó. Após o protagonista experimentar um dramático desvendamento de Deus, ele clama:
Meus ouvidos tinham escutado falar de ti, mas agora meus olhos te viram.
Essa mudança – de ouvir falar de Deus com os ouvidos e de “escutar”Deus, de uma crença de segunda mão para uma de primeira mão – é no que a sabedoria alternativa de Jesus se centra.
O Evangelho de Jesus – uma boa-nova da mensagem do próprio Jesus – é que existe uma maneira de ser que se move para além tanto da sabedoria tradicional religiosa quanto da secular. O caminho da transformação de que Jesus falou leva de uma vida de obrigações e comparativos (por padrões culturais ou por Deus) para uma vida de relacionamento com Deus. Sai das amarras da preocupação consigo mesmo para a liberdade do desprendimento de si mesmo. Sai de uma vida centrada na cultura para uma vida centrada em Deus.
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Por Marcus J. Borg, considerado um dos maiores especialistas mundiais no estudo do Jesus histórico e do Novo Testamento falecido em 2017 em seu último livro Meeting Jesus again for the first time: the historical Jesus & the heart of contemporary faith
Segue uma playlist de Marcus J.Borg: